Arte em Fragmentos: o Mosaico como Força de Criação Coletiva na Serra

Arte em Fragmentos: o Mosaico como Força de Criação Coletiva na Serra

Por Giuliano de Miranda

A arte do mosaico, antiga como a própria história da civilização, tem reencontrado na Serra, município do Espírito Santo, um terreno fértil para florescer. No bairro Novo Horizonte, o Espaço das Artes Adriana Dutra, reconhecido como Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura, vem se tornando um dos principais polos de efervescência criativa da região. Sob a condução da artista Nanda Vieira, a Oficina de Mosaico tem encantado e mobilizado uma comunidade diversa de mulheres — professoras, arquitetas, artistas e curiosas — em torno da arte de recompor o mundo a partir de fragmentos coloridos.

Uma obra monumental: o ipê-amarelo como símbolo de resistência e beleza

Desde o início do ano, dezenas de mãos se revezam no corte, na colagem e na disposição de pequenas pastilhas que, aos poucos, vão revelando um painel de 4 metros por 2,80 metros. No centro da composição, um ipê-amarelo ergue-se majestoso, cercado por flores, rios e elementos naturais que homenageiam a biodiversidade e a força da natureza brasileira.

Mais do que uma imagem, o ipê — árvore símbolo da resistência diante das estações — representa a força feminina e comunitária que move o projeto. “É uma alegria ver a dedicação e o encantamento das participantes com essa arte milenar que é o mosaico. Cada uma está criando sua própria peça, e o resultado tem sido maravilhoso. Estou muito satisfeita por realizar esse trabalho em um espaço tão importante como o da Adriana Dutra”, afirma Nanda Vieira.

O encerramento da oficina está previsto para novembro, quando o painel será inaugurado em uma celebração cultural com música, performances e exposições paralelas — um evento que reafirma o papel do Espaço das Artes Adriana Dutra como território de convivência e criação.

Entre gerações: quando a arte se transforma em afeto

Um dos traços mais belos dessa iniciativa é a diversidade das participantes. Entre elas, estão Geisa, artista do ateliê que auxilia tecnicamente na construção do painel; Suzana, professora e artista residente do espaço; e “Mamãe”, uma mulher de mais de 80 anos cuja vitalidade tem inspirado todo o grupo.

“Mamãe chega cedo, corta suas pastilhas, conversa, ri, canta. Ela nos ensina que a arte é também uma forma de permanecer viva e curiosa”, comenta Suzana. Essa convivência entre diferentes gerações tem feito da oficina um laboratório de afetos, onde o aprendizado técnico caminha lado a lado com a troca de experiências e memórias.

Além da presença constante de Nanda, o projeto conta com o apoio e entusiasmo da artista Adriana Dutra, gestora do espaço, que há anos mantém o local como ponto de encontro entre arte, educação e cidadania.

Do ateliê para a rua: o mosaico como memória coletiva.

Enquanto a obra do ipê ganha forma dentro do ateliê, um segundo projeto conduzido por Nanda Vieira expande a presença do mosaico para o espaço público. Trata-se de um mural de 4×5 metros encomendado pela Associação de Moradores do Parque Residencial Laranjeiras, também na Serra.

Dessa vez, o tema nasce de uma história real vivida pela comunidade: o dia da eleição que marcou a renovação da diretoria da associação. Durante o processo de votação, um bando de pássaros sobrevoou o local e começou a se alimentar de cupins que infestavam a árvore em frente à sede. A cena, presenciada por dezenas de moradores, foi interpretada como um sinal de renovação e esperança — e acabou se transformando em metáfora central da obra.

O desenho do painel, de traço simples e simbólico, foi criado por Lilian Souto, integrante da associação, e destaca a diversidade dos moradores: figuras com diferentes tons de pele, idades e expressões, vestidas com roupas coloridas e dispostas em harmonia. Mais da metade dos materiais utilizados são reciclados — pedaços de pisos, azulejos e pastilhas recolhidos em entulhos urbanos, reafirmando o compromisso com a sustentabilidade e a valorização do território.

Arte, sustentabilidade e pertencimento

A escolha pelo uso de materiais reaproveitados é também uma escolha ética e política. Em tempos de consumo desenfreado, o mosaico ensina que cada pedaço pode ter novo valor, cada fragmento pode ser reconstituído em beleza. “Trabalhar com o que seria descartado é um ato de resistência estética e ambiental. É dar nova vida àquilo que foi deixado de lado”, destaca Nanda.

A mesma filosofia permeia o trabalho no Espaço das Artes Adriana Dutra, que tem promovido oficinas de upcycling, costura criativa e arte com materiais reutilizados, consolidando-se como referência regional em economia criativa e sustentabilidade cultural.

O mosaico como metáfora social

O que une os dois projetos — o painel do ipê e o mural de Laranjeiras — é mais do que a técnica; é a ideia de reconstrução coletiva. Fragmentos de azulejos se tornam imagem do próprio tecido social: múltiplos, imperfeitos e interdependentes.

Nesse sentido, o trabalho de Nanda Vieira dialoga com a tradição do mosaico como arte de resistência, que atravessa séculos e culturas. Desde os painéis bizantinos até as obras modernistas de Athos Bulcão, o mosaico sempre foi uma arte que reflete a complexidade do mundo a partir de pequenas partes.

Na Serra, essa tradição ganha contornos contemporâneos e comunitários. As mãos que colam as peças não apenas constroem imagens, mas reconstroem laços sociais. É o que explica o entusiasmo das participantes e o envolvimento da população local, que acompanha com curiosidade o avanço das obras.

Espaço das Artes Adriana Dutra: um núcleo pulsante de criação

O Ponto de Cultura Adriana Dutra tem se destacado como uma das principais referências culturais da Serra. Desde sua criação, o espaço abriga oficinas de música, artes visuais, dança e teatro, além de exposições e feiras criativas que movimentam o cenário artístico local.

A artista e gestora Adriana Dutra define o projeto como “um espaço que existe para fortalecer o fazer artístico e a convivência”. Sua atuação é marcada pela abertura às linguagens populares, pela valorização das mulheres artistas e pelo estímulo à criação coletiva.

O diálogo com artistas como Nanda Vieira reforça esse propósito: levar a arte para além das galerias, colocando-a a serviço da comunidade.

A Serra e o florescimento da arte comunitária

Nos últimos anos, a Serra tem se tornado um território fértil para experiências de arte participativa. Projetos como os de Nanda Vieira, realizados em parceria com o Ponto de Cultura Adriana Dutra e a Associação de Moradores de Laranjeiras, revelam um movimento crescente de apropriação simbólica do espaço urbano por meio da arte.

Essas ações demonstram que a produção cultural capixaba não se restringe à capital — ela se expande pelos bairros, pelos quintais, pelas ruas, onde o mosaico da vida real encontra sua forma estética.

O que se ergue na Serra não é apenas um painel de mosaico, mas um monumento à convivência, à partilha e ao gesto coletivo. Em cada fragmento colado, há uma história pessoal, um traço de vida, uma emoção que se torna parte de algo maior. A arte, nesse contexto, cumpre um papel que ultrapassa o estético — ela se faz instrumento de cura, de escuta e de comunhão.

O ipê-amarelo que floresce no painel do Espaço das Artes representa mais do que a beleza da natureza brasileira; ele simboliza a própria resiliência da comunidade, a capacidade de florescer mesmo diante das dificuldades. E o mural de Laranjeiras, com seus pássaros libertos e moradores coloridos, transforma uma cena cotidiana em mitologia popular, em narrativa poética sobre a esperança e o renascimento.

A força dessas criações está no gesto simples, manual, artesanal — o gesto de quem une o que estava separado. O mosaico é, afinal, uma arte de reparação: uma poética que nos ensina que a vida, mesmo fragmentada, pode ser recomposta com beleza, paciência e solidariedade.

Na Serra, essa arte ganha voz, cor e ritmo. Entre cacos, risadas, colas e encontros, nasce uma estética da coletividade, um exercício de cidadania sensível e partilhada. E quando o ipê e os pássaros estiverem prontos, quando as mãos descansarem e as paredes estiverem tomadas por cor, será possível perceber que ali não se construiu apenas um painel — construiu-se uma comunidade.

E não para por aí conforme adianta Fernanda Vieira sobre seus próximos trabalhos:

• Mosaico da Escadaria que liga a rua de baixo até a igreja Reis Magos me Nova Almeida. ( este projeto muito interessante, envolve toda a comunidade, escolas comerciantes e todos que transitarem pelo local, pois cada pessoa vai poder criar uma peça pequena que fará parte da escadaria.)

• Mosaico do Quadro de Belchior Paulo em Tamanho original e fidelidade de cores e detalhes. Será leiloado para manutenção do ateliê.